O “preso-livre” morto no Compaj, em Manaus

Por Priscila Mesquita

Manaus – Quadra 34 do Cemitério Parque Tarumã, onde estão enterrados os detentos mortos na rebelião do Complexo Penitenciário Anísio Jobim. (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Na primeira semana de janeiro, a notícia do massacre ocorrido no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj) chocou o mundo. Por vários dias, a mídia internacional noticiou e a sociedade comentou o fato de que “56 detentos foram brutalmente assassinados por uma facção rival dentro do presídio em Manaus”. De mãos dadas com a notícia, surgiram as fotos e os filmes de terror produzidos pelos presos, que zombavam da cena enquanto os corpos eram empilhados. Os “números históricos” e as cenas estarrecedoras, embora repetidos exaustivamente, foram incapazes de contar as histórias de quem foi exterminado. Dentro dos carrinhos que receberam partes de corpos cortados havia 56 livros com páginas diferentes. Certamente, o rio de sangue continha erros amargos; lágrimas de injustiças e de aprendizados. No massacre também sucumbiram algumas pessoas transformadas dentro do presídio. Uma delas é a do jovem Josué* (nome fictício), um “preso-livre” cuja trajetória revela a procura obstinada por um pai.
Josué foi um garoto em busca de aceitação e de cuidado no ambiente familiar. Como todo adolescente, ansiava por ter um relacionamento mais próximo com seus pais, mas não recebia da parte deles o afeto e a segurança emocional que procurava. Já aos 13 anos de idade, sentia que era um ser invisível dentro de casa, um órfão de pai e de mãe ainda vivos. Na perspectiva dele, não existia ainda um lugar ao qual pudesse pertencer.
Em meio à sua crise de identidade, Josué começou a estabelecer relacionamentos nas ruas do bairro Jorge Teixeira, na zona Leste de Manaus, uma das mais violentas da cidade. E ao conviver com outras pessoas, tornou-se amigo de um homem mais velho, que tinha idade para ser o seu pai. Este novo amigo dispôs-se a ouvir Josué e, aparentemente sensibilizado pelas condições precárias do adolescente, decidiu suprir suas necessidades básicas, como alimentos e roupas. Mais do que isso, o novo amigo do bairro valorizou Josué, afirmando que ele podia ser alguém na vida.   
Com tantas provas de amizade já recebidas, o adolescente não pôde negar um pedido feito pelo homem, que solicitou a entrega de um “produto” para um morador do bairro. Josué desconfiou que o material tratava-se de droga ilícita, mas não questionou e fez o serviço. Por causa do êxito no trabalho, recebeu homenagem e pagamento em dinheiro do amigo – agora patrão – e da facção criminosa à qual estavam vinculados. Assumindo então o papel de “mula”, Josué começou a transportar drogas para outros bairros da capital, escoltado por quatro “soldados” e com um carro em sua propriedade. Aos 22 anos, tudo corria bem para o jovem, até ser preso por tráfico de drogas e encaminhado para o Instituto Penal Antônio Trindade (Ipat), localizado no mesmo Complexo Penitenciário onde está o Compaj.       
O processo de Josué foi julgado e ele cumpriu sua pena. Menos de 30 dias após sair do Ipat, foi capturado novamente pela polícia por reincidir no tráfico e ainda por cometer homicídio. Desta vez foi direcionado para o Compaj e foi lá que Josué ouviu uma mensagem capaz de mudar a rota de sua vida. Em uma reflexão sobre “família” pregada por membros da missão “Amigos de Cristo”, em 2015 o jovem arrependeu-se de erros já cometidos com a esposa, os três filhos e com as pessoas que havia prejudicado de alguma forma, e decidiu entregar sua vida a Jesus, a fim de ser o marido e o pai que sua família precisava. Agora, Josué conhecia o Pai Celestial que tanto procurou.
Nas dependências do Compaj, os outros detentos logo perceberam a mudança de Josué. E como acontece costumeiramente nas unidades prisionais, o novo convertido tornou-se integrante da “Cela da Bênção”, onde já estavam outros cristãos. Semanalmente, Josué era visitado pelos capelães da missão Amigos de Cristo e da Igreja Presbiteriana de Manaus e dessa forma fortaleceu o compromisso de ser diferente.
Um dos capelães que o acompanhou foi Rogério Evangelista, que se emociona ao falar sobre a história de Josué, um dos 56 detentos assassinados. E ao ver uma foto de pernas e braços amontoados no pátio ensanguentado do Compaj, Evangelista faz uma pausa e explica por que continuará falando sobre Deus nos seis presídios em Manaus. “Eu conheço cada uma dessas histórias. Muitas pessoas tiveram suas vidas ceifadas, mas foram salvas”.
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• Priscila Mesquita é jornalista e gestora do Ministério de Comunicação da Igreja Presbiteriana de Manaus (IPManaus).
Fonte: Ultimato

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